"Toda vida que tinha eleição, o pessoal vinha dizendo que nós íamos ter direito, que iam conseguir os papéis da
casa própria. (...) E nada da gente receber o papel", narra a diarista Irisneide Cândido.Ela vive há 27 anos na mesma casa, na comunidade Francisco Ivo, no bairro Luciano Cavalcante, em Fortaleza, mas não possuía o documento que reconhece o direito legal ao próprio lar — o "papel da casa".
Em setembro de 2024, foi marcada uma reunião, em uma escola municipal da região, com os moradores da Francisco Ivo. De lá, Irisneide saiu com o "título de legitimação fundiária", entregue como se fosse o sonhado "papel da casa". "Mas a gente não ficou acreditando muito, não", lembra.
Os moradores da comunidade Francisco Ivo não foram os únicos a receber o "título de legitimação fundiária". O mesmo documento foi entregue, entre os meses de agosto e setembro do ano passado, em outras oito comunidades de Fortaleza pela gestão do ex-prefeito José Sarto (PDT).
E, assim como no caso de Irisneide, também teve quem desconfiasse da validade destes títulos. "Quando eu peguei o documento, eu virei a página e vi que era assinado pelo secretário. Eu detectei que o documento era falso, porque um documento que é de cartório, o secretário da habitação não assina", conta o gerente de Recursos Humanos, José Rocha.
Ele é morador do Planalto Vitória, no bairro Canidezinho, desde 2002, quando se mudou com a família para a comunidade. A casa onde viveu com os pais e a irmã foi dividida e, desde 2018, ele tem o próprio espaço no mesmo terreno no qual os familiares vivem. José lembra o dia em que recebeu o documento, em evento na "quadra lotada" de uma escola municipal, e da sensação ao ver o que tinha recebido. "Quando eu peguei, eu já vi logo: isso aqui não é o 'papel da casa'. (...) A gente se sentiu feito de palhaço".
Agora, o Ministério Público do Ceará (MPCE) apura o episódio, por entender que "a emissão dos referidos títulos se deu de forma irregular", conforme indica despacho, de julho deste ano, assinado pelo promotor de Justiça Marcelo Yuri Moreira Martins, da 2ª Promotoria de Justiça de Conflitos Fundiários e Defesa da Habitação.
Foram instaurados nove procedimentos administrativos em Promotorias de Justiça especializadas em Conflitos Fundiários e Defesa da Habitação. Cada um deles será responsável pela apuração de uma das comunidades afetadas. São elas: Dom Lustosa, Conjunto Palmeiras II, Planalto Vitória, Aracapé, Santa Edwirges, Jardim América, Cidade de Deus, Novo Jardim Castelão e Francisco Ivo.
Também foi instaurado procedimento na esfera eleitoral, já que as entregas dos títulos foram realizadas durante a campanha eleitoral de 2024, quando Sarto era candidato à reeleição para a Prefeitura de Fortaleza.
Qual é a irregularidade?
Em publicações no Instagram, o ex-secretário de Habitação da Prefeitura de Fortaleza durante a gestão do ex-prefeito José Sarto, Carlos Kleber, divulga a entrega do "papel da casa" a moradores das comunidades citadas. Sobre o Planalto Vitória, onde vive José Rocha, a postagem, em agosto de 2024, comemora "750 papéis da casa entregues".
No dia 19 de setembro de 2024, a publicação fala da "entrega de 500 papéis da casa aos moradores do Aracapé". "Mais uma comunidade que recebe a segurança jurídica de ser proprietária do seu imóvel", completa. O ex-secretário é quem aparece nos eventos de entrega dos documentos, enquanto o ex-prefeito é apenas citado. Kleber também divulgou fotografias ou vídeos de eventos realizados nas comunidades Novo Jardim Castelão, Cidade de Deus, Conjunto Palmeiras II e Santa Edwirges.
Neles, os "títulos de legitimação fundiária" são sempre chamados de "papel da casa". Contudo, os dois termos não são sinônimos.
"A matrícula (do imóvel) é que tem um apelido carinhoso de 'papel da casa'", explica o presidente da Comissão de Acompanhamento de Regularização Fundiária, Urbana, Rural e Conflitos Fundiários da OAB-CE, Edwin Bastos Damasceno. "Com outro documento, eu posso dizer: 'eu tenho a expectativa do direito (ao imóvel)'. Mas a matrícula é que eu digo: 'opa, agora a lei diz que isso aqui é meu'. E a matrícula do cartório de registro imobiliário da zona é carinhosamente chamada de papel da casa", afirma.
A matrícula do imóvel é considerada a "certidão de nascimento" dele. O registro da matrícula ocorre no Cartório de Registro de Imóveis e nela são descritas informações como a localização, as dimensões, o histórico de transações e a quem pertence o imóvel. O registro da matrícula do imóvel é o último passo do processo de regularização fundiária urbana dos chamados "núcleos urbanos informais" — categoria na qual se encaixam as comunidades afetadas pela irregularidade.
Portanto, para que os moradores tenham acesso ao 'papel da casa', toda a comunidade precisa passar pela regularização fundiária, processo que pode durar anos e envolve diversas etapas. Ao final, é emitida a Certidão de Regularização Fundiária (CRF) e, na sequência, ela é cadastrada no Cartório de Registro de Imóveis.
E, a partir desta certidão, são emitidas as matrículas e, cada morador, passa a ter o reconhecimento legal da própria casa. No caso das nove comunidades envolvidas na apuração do Ministério Público, nenhuma possuía a CRF na época em que houve a entrega do "papel da casa" pela Prefeitura.
É possível perceber a diferença dos documentos no perfil do próprio Carlos Kleber. Em publicação feita após entrega do "papel da casa" na comunidade Rio Doce, no bairro Sapiranga, em novembro do ano passado, moradores aparecem segurando um documento do Cartório de Imóveis da 1ª Zona. Nele, conforme a imagem abaixo mostra, é possível ver a matrícula.
O Riacho Doce não é uma das comunidades que tem o processo apurado pelo Ministério Público. Em publicações de outras comunidades, é mostrado o "título de legitimação fundiária", com assinatura do ex-secretário de Habitação, com as informações do beneficiário e com o alerta que "o presente título perderá sua validade caso o beneficiário deixe de cumprir os requisitos previstos em Lei até a data do registro no competente Cartório de Registro de Imóveis.
'Proteger as famílias'
O PontoPoder entrou em contato com o ex-prefeito José Sarto e com o ex-secretário de Habitação Carlos Kleber, responsável pela entrega dos papéis da casa, que passam agora por apuração pelo Ministério Público do Ceará.
Sarto pontuou que o título de legitimação fundiária é um "documento legítimo e é fruto de um trabalho longo e sério da gestão Sarto". "Portanto, todas as ações realizadas pela gestão do prefeito José Sarto cumpriram estritamente o que diz a Constituição e visaram à garantia jurídica da população mais carente", ressalta, em nota enviada pela assessoria de imprensa.
O ex-secretário Carlos Kleber explica que o título entregue às comunidades é um "ato do poder público" para reconhecer "o cumprimento dos requisitos ao beneficiário para que ocorra a aquisição do direito real de propriedade" e, portanto, "reconhecer o direito de propriedade das famílias ali ocupantes e residentes".
"Daí, portanto, a validade dos títulos entregues que, além de reconhecer o cumprimento dos requisitos legais, tinham a função de proteger as famílias de turbação de suas posses por parte das organizações criminosas, fazendo um congelamento dos dados coletados pela equipe técnica de campo e dando ampla publicidade, de forma a impedir comercialização indevida e, em última análise, atos criminosos contra as famílias beneficiárias de serem expulsas de suas residências".
Carlos Kleber admite que "os títulos não conferem a outorga do direito real de propriedade, mas sim o reconhecimento dos requisitos para que, no momento do registro, seja conferido" esse direito ao imóvel. Ele disse ainda esperar que a atual gestão dê "continuidade ao trabalho na gestão anterior" para que os moradores das comunidades possam receber as matrículas definitivas.
A Legitimação Fundiária é, de fato, prevista na Lei Municipal nº 334/2022, que detalha as normas e procedimentos para a Regularização Fundiária Urbana (ReurbFor) em Fortaleza. A legislação foi aprovada durante a gestão Sarto, que reforçou isso e disse ser o "responsável pelo maior programa de regularização fundiária da história de Fortaleza".
A lei municipal tem como base legislação federal, de nº 13.465/2017, que trata do mesmo tema, mas trazendo as especificidades do Reurb para a capital cearense. No artigo 47, a Lei nº 334/2022 trata da legitimação fundiária e a descreve como "forma originária de aquisição do direito real de propriedade conferido por ato do poder público". Já o título de legitimação fundiária é citado apenas uma vez.
A legislação municipal afirma que, para a emissão da Certidão de Regularização Fundiária, é necessária a "listagem de titulação dos beneficiários com nomes dos ocupantes que houverem adquirido a respectiva unidade, por título de legitimação fundiária ou mediante ato único de registro". "É um dos passos, mas é mais administrativo", resume Edwin Bastos Damasceno. "O processo andou, mas não finalizou. Ele finaliza com a matrícula, (...) e a matrícula é que é conhecida como papel da casa".
'Enganação'
A legitimação fundiária pode garantir a propriedade do imóvel em uma situação, prevista no parágrafo 8, do artigo 47 da legislação municipal. "Olha como são termos técnicos, é até difícil de explicar", pontua o atual secretário de Habitação de Fortaleza, Jonas Dezidoro.
Em casos em que a comunidade já possua a Certidão de Regularização Fundiária, ou seja, já tenha finalizado o ReurbFor, imóveis remanescentes — em que os proprietários não tenham participado do processo original, "o Município poderá reconhecer a legitimação fundiária por título individual".
"O que foi que eles (gestão passada) fizeram? Eles não tinham nem a aprovação da AOP (Análise de Orientação Prévia, um dos passos iniciais, em que o processo passa pela Secretaria Municipal de Urbanismo e Meio Ambiente), a primeira etapa. E saíram emitindo o título de legitimação fundiária sem sequer ter aprovação da AOP, sendo que o título só pode ser emitido depois da aprovação da CRF e para os remanescentes. Foi um documento completamente descabido, (...) uma verdadeira enganação".
A atual gestão da Secretaria Municipal de Habitação (Habitafor), acrescenta, fez uma "força-tarefa" para angariar as informações sobre quais comunidades teriam recebido o "título de legitimação fundiária". Os dados foram repassados ao Ministério Público — a princípio, o órgão tinha denúncias apenas sobre o caso da comunidade Dom Lustosa.
"A gente foi pego de surpresa no começo da gestão. A gente começou a ser procurado por algumas pessoas que disseram que receberam... Na cabeça delas, elas tinham recebido o papel da casa. Estavam indo no banco, no cartório, e o banco e o cartório e outras entidades começaram a dizer que não era matrícula. Foi quando isso nos alertou e a gente começou a averiguar e percebeu o que lamentavelmente foi feito pela antiga gestão", relata Dezidoro.
Em março deste ano, em resposta à solicitação feita pelo Ministério Público, a Habitafor — com a Prefeitura de Fortaleza sob a gestão do atual prefeito Evandro Leitão (PT) — informou que a emissão e entrega dos títulos foi feita sem cumprir a legislação.
"A emissão e entrega dos ‘Títulos de Legitimação Fundiária’, que ocorreram em 2024, foram realizadas sem registro cartorário, portanto, não cumprindo a observância das etapas previstas na Legislação Municipal, Lei Complementar nº 334/2022 e, Federal, Lei nº 13.465/17", informa a resposta da Coordenadoria de Regularização Fundiária, vinculada a Habitafor.
Também foram repassadas as informações sobre como está o processo de regularização fundiária de cada comunidade, assim como o número de pessoas que receberam o título de legitimação fundiária. No total, foram 2,2 mil títulos entregues nas nove comunidades, o que afetou cerca de 3,6 mil pessoas.
Previsão para a entrega do 'verdadeiro papel da casa'
Por enquanto, a maioria dessas pessoas segue aguardando a entrega do "verdadeiro papel da casa", conforme define Jonas Dezidoro. "O prefeito Evandro Leitão nos determinou que a gente priorizasse esses processos. E é o que nós estamos fazendo", afirma o titular da Habitafor.
"Mas são processos distintos, porque tem comunidades maiores, comunidades menores, tem comunidades que estão perto de leito de rio, tem comunidade que não. Então, tudo isso tem impacto e eu não tenho como precisar (quando será a entrega do 'papel da casa'), mas nós estamos correndo para que seja o mais rápido possível".
Ele cita como exemplo o Conjunto Palmeiras II, em que 1.030 pessoas receberam o título, enquanto na comunidade Santa Edwirges, no bairro Bonsucesso, foram 200 moradores. "É uma diversidade muito grande. Eu não tenho como precisar o tempo e não é igual para todos", acrescenta.
Para uma das comunidades, o processo foi finalizado. Na Francisco Ivo, os moradores receberam, em junho de 2025, o registro em cartório dos imóveis, com a devida matrícula. Uma das beneficiadas foi Irisneide Cândido, que falou no início desta reportagem.
Ela lembra, inclusive, que também teve receio de ser "mais uma enganação". A desconfiança era compartilhada com outros moradores da comunidade, inclusive o próprio cunhado, que mora no imóvel vizinho ao dela e acabou não participando da entrega feita agora em 2025 por não acreditar que seria verdadeira. "Agora, ele está correndo atrás", diz.
Por isso, Dezidoro pontua que uma das prioridades da atual gestão é "dar credibilidade" a esse processo. "Esse programa do 'Papel da Casa' é uma das nossas prioridades e a gente quer de novo dar credibilidade a ele, porque é levar segurança jurídica para as famílias", diz.
Com o 'papel da casa', Irisneide fala que o sentimento é de felicidade. "A gente tinha medo de tomar nossas casas, porque a gente não tinha como comprovar que era nossa", relata. "Eu só sei que saiu, graças a Deus, saiu".
José Rocha, do Planalto Vitória, ainda aguarda para ver realizado esse sonho, assim como aconteceu com Irisneide. "O 'papel da casa' dá uma segurança, uma dignidade às famílias. Ele dá uma segurança de dizer que algo é seu e ninguém pode lhe tirar. É algo precioso na sua vida, principalmente quando se trata de ambiente familiar", resume. PONTO DO PODER
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