A área da Saúde tem sido o destino prioritário das emendas parlamentares no Ceará, uma tendência histórica dos congressistas do estado.
O que deveria ser uma boa notícia, no entanto, tem ligado um sinal de alerta entre gestores públicos e entidades da sociedade civil que atuam no setor, principalmente pela falta de previsibilidade dos recursos, que podem dobrar ou até quase desaparecer de um ano para o outro.
O cerne do risco está na origem dos valores. As emendas parlamentares são um dos principais instrumentos de autonomia de deputados federais e senadores, o que faz com que os 594 congressistas decidam anualmente o destino de bilhões de reais. Para prefeitos e secretários municipais, isso significa dependência de articulações políticas anuais, o que torna o financiamento da saúde imprevisível.
Uma pesquisa divulgada neste segundo semestre pelo Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS), organização sem fins lucrativos e apartidária, mede o grau de exposição da saúde pública brasileira a esse modelo de financiamento — e o Ceará não foge à regra.
O boletim Radar+SUS nº 6 — “Emendas parlamentares no SUS: recursos incertos para despesas permanentes”, analisou os repasses realizados entre 2021 e 2024. O diagnóstico aponta grande irregularidade nas indicações e crescimento da destinação de emendas para custeio de Ações e Serviços Públicos de Saúde (ASPS), substituindo os investimentos de longo prazo.
dos municípios brasileiros registraram variação superior a 30% nos recursos de emendas para custeio de ASPS entre 2021 e 2024
No Ceará, 91% dos municípios receberam recursos de emendas em todos os anos entre 2021 e 2024. No entanto, 16 cidades cearenses (9%) ficaram sem repasses em ao menos um dos anos analisados.
Ao mesmo tempo, o índice salta quando o critério é falta de previsibilidade. Em média, nesse período, 55% dos municípios do Ceará registraram redução nas emendas para custeio de saúde, enquanto 45% tiveram aumento nos repasses.
Avanço das emendas sobre o orçamento
Segundo o IEPS, desde a Emenda Constitucional nº 86/2015, o Brasil vive uma mudança estrutural na forma de destinar recursos ao SUS. Até 2016, a maior parte das emendas financiava investimentos — como a construção de Unidades Básicas de Saúde (UBS) e a compra de equipamentos.
“A partir de 2017, no entanto, mais da metade dos recursos passou a financiar gastos de custeio do SUS, evidenciando uma alteração na dinâmica de destinação de recursos do Poder Legislativo para o setor. Esse tipo de despesa concentra-se no apoio a estados e municípios para a execução de Ações e Serviços Públicos de Saúde (ASPS), como o funcionamento de Centros de Atenção Psicossocial, Unidades Básicas de Saúde e ações de vigilância sanitária”, destaca o boletim.
O impasse atual gira em torno das emendas de bancada e de comissão. A Constituição Federal de 1988 proíbe o uso de emendas individuais para o pagamento de pessoal, encargos sociais ou juros da dívida pública.
No entanto, em 2024, o Tribunal de Contas da União (TCU) decidiu estender a proibição também às emendas coletivas, por considerá-las análogas às transferências voluntárias — igualmente vedadas para esse fim.
O Congresso Nacional, por outro lado, sustenta que a restrição deve valer apenas para as emendas individuais. Em junho de 2025, os parlamentares aprovaram a Resolução nº 02/2025-CN, que autoriza o uso das emendas coletivas no pagamento de salários de profissionais do SUS, decisão que reacendeu o debate sobre a sustentabilidade do financiamento.
A partir da resolução do Congresso, o próprio TCU mudou a posição inicial por meio do Acórdão nº 2458/2025, publicado em outubro. A decisão reconhece a validade da destinação de emendas parlamentares de bancada e de comissão para o pagamento de pessoal em atividade de saúde.
Gargalos e incertezas
De acordo com o boletim do IEPS, a nova regra pode criar um importante gargalo para a execução das políticas de saúde, tendo em vista o uso de recursos voláteis para o pagamento de despesas fixas. Essa instabilidade não se refere apenas ao volume financeiro, pondera o estudo, mas envolve também a regularidade dos repasses.
“Como a indicação das emendas parlamentares depende exclusivamente da decisão anual de deputados e senadores, cada município fica sujeito à incerteza sobre receber ou não esses recursos”, aponta o Instituto.
A pesquisa cobre o período de 2021 a 2024, primeiro ciclo após a entrada em vigor da obrigatoriedade das emendas de bancada e de sua vinculação à Receita Corrente Líquida (RCL).
Os dados, obtidos no Fundo Nacional de Saúde (FNS), foram corrigidos pelo IPCA de dezembro de 2024 e consolidam o retrato mais recente da dependência municipal em relação às emendas parlamentares.
Entre os apontamentos, o estudo conclui que o volume de repasses para custeio de saúde se mostrou “altamente irregular”, o que compromete o planejamento orçamentário de políticas e programas na área que dependem de previsibilidade.
“Esse padrão é incompatível com um modelo de financiamento voltado a despesas fixas, como o pagamento de pessoal. Embora a Resolução n°02/2025-CN se restrinja às emendas coletivas, e o uso de emendas individuais para esse fim esteja vedado pela Constituição, a medida reforça a fragilidade do atual arranjo de financiamento do SUS, marcado pela fragmentação e pela instabilidade”
Os efeitos no Ceará
O cenário de imprevisibilidade alcança o Ceará, onde 9% dos municípios ficaram sem envio de emendas para custeio de saúde em ao menos um dos anos entre 2021 e 2024. O índice coloca o Estado em situação de melhor regularidade na comparação com a média nacional — 14% de irregularidade —, ao mesmo tempo que segue o padrão da região Nordeste, que também apresenta a marca de 9% de cidades sem repasses contínuos.
Mesmo assim, o atual panorama do financiamento da saúde nas cidades cearenses gera preocupação aos gestores, diante do cenário de volatilidade dos recursos e “defasagem sistêmica” nos custos da área. Foi o que ressaltou o presidente da Associação dos Municípios do Estado do Ceará (Aprece), Joacy Júnior (PSB), o Juju, em entrevista ao PontoPoder.
“Gera preocupação porque nem todos vão ter acesso. E mais, alguns vão ter acesso, (um) vai receber, por exemplo, R$ 10 milhões, e o outro R$ 0, mas esse que recebeu R$ 10 milhões não está rico, porque mesmo recebendo recursos, a tabela do SUS está defasada e engole esses recursos. É um problema gigantesco, estrutural e que a solução seria a repactuação”
Ex-prefeito de Jaguaribara, Joacy Júnior enfatiza que a distribuição de emendas depende diretamente da relação do chefe do Executivo com o deputado, o que faz com que nem todas as cidades sejam beneficiadas com os recursos para a saúde. “Mas grande parte dos municípios irá receber algum valor, o que já ajuda bastante as finanças dos municípios, os quais estão passando por dias difíceis financeiramente”, pondera.
Olhando pelo viés municipalista, salienta o presidente da Aprece, a solução seria transformar as emendas em repasse extra com critérios técnicos e, a partir daí, fazer a divisão dos recursos. “Só que os deputados jamais vão aceitar isso. Eu me resumo a dizer somente isso”, ponderou.
“O ideal seria atender a todos os municípios usando como base de cálculo do coeficiente do FPM (Fundo de Participação dos Municípios), isso atenderia a todos os municípios de uma forma mais justa, mas infelizmente esses recursos têm realmente essa relação com os deputados”, pontuou Joacy.
Por sua vez, o coordenador da bancada federal do Ceará, o deputado Domingos Neto (PSD), rebate críticas sobre desigualdade no acesso às emendas. Para o parlamentar, as articulações políticas são necessárias para evitar que estados maiores concentrem mais recursos.
“Criminalizar a emenda não é o caminho. Se deixássemos tudo só a cargo da técnica, a maior parte dos recursos iria para estados maiores, como São Paulo. É a política que garante que o Ceará não seja prejudicado”
Domingos Neto avalia, ainda, que os parlamentares têm o papel de deixar em sintonia os repasses dos recursos com as necessidades dos municípios. “Você deve estar ensinando, brigando aqui (em Brasília), porque, de fato, se não fosse a política, intercedendo, não seriam os técnicos do Ministério da Saúde que saberiam ser justos com o que o Ceará precisa”, pontuou o deputado federal.
Os efeitos no País
Entre 2021 e 2024, 4.810 municípios brasileiros (86%) receberam emendas parlamentares — individuais, de comissão ou de bancada — em todos os anos analisados. Outros 759 municípios (14%) receberam de forma descontinuada: 509 apenas entre 2021 e 2022, 178 por três anos, 69 por apenas um ano e 3 em nenhum.
O estudo mostra ainda uma forte volatilidade no volume dos repasses. Entre os municípios que receberam em todos os anos, 24% registraram variação média anual acima de 100%, tanto para mais quanto para menos — o que significa que os valores podem ter dobrado ou quase desaparecido de um ano para o outro.
Mais da metade (53%) das cidades apresentou variação negativa anual no volume recebido. A exceção ocorreu entre 2023 e 2024, quando quase todos os municípios — com exceção do Mato Grosso do Sul — tiveram aumento, segundo dados levantados pelo IEPS.
Já nos locais com variação positiva, o valor médio per capita saltou de R$ 113,35 em 2023 para R$ 195,29 em 2024.
taxa de crescimento do valor médio per capita nos municípios com variação positiva entre 2023 e 2024
O aumento no ano passado pode ser explicado pelo período de eleições municipais, quando o envio de emendas costuma ser significativamente maior. É o que evidencia o estudo do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde.
“Pesquisadores destacam que esse comportamento ocorre porque a destinação de recursos públicos — especialmente pelo Poder Legislativo — está fortemente associada ao uso político, seja como estratégia de busca de votos, seja como forma de fortalecer candidaturas no âmbito municipal”, indica a análise.
Série de reportagens
A primeira reportagem deste especial mostra como a saúde pública se tornou o principal destino das emendas parlamentares enviadas ao Ceará, que devem ultrapassar a marca de R$ 1 bilhão em investimentos ao longo do próximo ano.
A terceira e última matéria da série traz uma discussão mais ampla sobre desafio da gestão da área, a partir de entrevistas com representantes do Instituto de Estudo para Políticas Públicas de Saúde (IEPS) e da Confederação Nacional de Municípios (CNM).PONTO DO PODER
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