Um espaço de debates republicanos transformado em uma praça de guerra. Assim foi a manhã de 24 de julho de 1914, no plenário da Assembleia Legislativa do Ceará.
A sede do Parlamento cearense, à época localizada no Palacete Senador Alencar — atual Museu do Ceará, no Centro de Fortaleza — se transformou em uma espécie de faroeste, com dezenas de cadeiras arremessadas, gritaria por todo lado e tiros disparados contra adversários.
Todo o burburinho tinha um alvo: o deputado Floro Bartolomeu, então presidente da Casa. O controverso parlamentar era braço direito na política de Padre Cícero e tinha sido um dos líderes da Sedição de Juazeiro, que naquele mesmo ano havia deposto o governador Franco Rabelo.
Na esteira desse movimento, o Ceará estava dividido, e essa polarização se refletia entre os parlamentares. Dos 30 deputados, metade apoiava o grupo liderado por Padre Cícero e Floro Bartolomeu, enquanto a outra metade estava do lado do então governador do Estado, Liberato Barroso.
No dia do atentado, o político pediu a palavra e fez um longo discurso com queixas ao governo estadual e em defesa de Juazeiro do Norte — que tinha, na Capital, a imagem atrelada à atuação de jagunços e ao fanatismo religioso. Em meio ao pronunciamento, tiros ecoaram pelas galerias do parlamento.
“Atirem mesmo nesse canalha!”, gritou um deputado rival de Floro. Em meio à confusão, uma pessoa que acompanhava a sessão pulou para dentro do plenário e tentou acertar o deputado novamente com um disparo de revólver, mas a bala não o atingiu.
O episódio é descrito pelo escritor cearense Lira Neto, no livro “Padre Cícero: Poder, fé e guerra no sertão”. Ele narra que, naquele dia, “cadeiras foram quebradas para que os braços servissem de arma e os encostos de escudo”.
“Bengaladas foram desferidas no ar, enquanto o taquigrafista tentava tomar nota do que Floro, de forma surpreendente, continuava a bradar na tribuna: ‘Eu só temo a desgraça antes de vê-la! Diante dela, é como se ela não existisse! Tenho por hábito não procurá-la, mas não costumo recuar quando ela me surpreende!’, gritava, desafiando os oponentes, ainda em plena pancadaria”, conta Lira Neto.

A sessão acabou interrompida até que a guarda legislativa reestabelecesse a ordem. Na volta dos trabalhos, Floro continuou com o discurso inflamado. “Continuarei com a mesma dignidade, a mesma energia a escalpelar os cadáveres morais que vejo aqui, diante de mim!”, concluiu.
Os jornais da época e livros, no entanto, não registram se o responsável pelos disparos foi identificado ou mesmo preso.
De forasteiro a braço direito de Padre Cícero na política
A sequência de eventos que levou Floro a cultivar inimigos a ponto de virar alvo de uma tentativa de assassinato em plena Assembleia começa quase 10 anos antes. No início dos anos 1900, ele chegou de mala e cuia em Juazeiro do Norte, então distrito da cidade do Crato. Conforme descreve o escritor Lira Neto, Floro era garimpeiro e se dizia médico e advogado.
Pouco a pouco, o recém-chegado foi ganhando a confiança de Padre Cícero e enveredando para a política. À época, o religioso — e a partir dali Floro — assumiram como principal bandeira conquistar a independência de Juazeiro, deixando a condição de distrito do Crato. Para isso, o futuro santo popular tentava usar sua influência junto ao governador, Nogueira Accioly, mas não tinha sucesso e seus planos eram adiados.
Além do interesse de conquistar mais autonomia para a “terra de Padre Cícero”, havia uma crescente animosidade na relação entre juazeirenses e cratenses. Os moradores do distrito eram referenciados como “imundos” e “guiados pelo satanás” e respondiam com boicotes ao comércio do Crato.
Vendo o tensionamento entre os moradores, Floro passou a alimentar ainda mais o desejo de emancipação entre os juazeirenses. Ele escrevia artigos em jornais locais defendendo a separação e, com apoio de Padre Cícero, arregimentou um efetivo de jagunços e fiéis maior que a força militar do Crato.

A pressão deu resultado e, em 22 de julho de 1911, pela Lei 1028, a Assembleia Legislativa do Ceará criou oficialmente a vila autônoma de Juazeiro. Padre Cícero tornou-se então o primeiro prefeito da Cidade e também passou a chefiar na região o partido do então governador, o oligarca Nogueira Accioly.
No comando político da recém-criada Juazeiro, o padre criou uma rede inédita de relacionamento e apoio entre os coronéis da região, atenuando os embates locais e criando uma espécie de fortaleza no entorno de sua cidade. Os coronéis, por sua vez, sustentavam a oligarquia Accioly.
Como Floro entrou na mira dos inimigos
Contudo, a duradoura e poderosa oligarquia mergulhou em uma crise, principalmente porque a população de Fortaleza se rebelou contra a manutenção do poder, terminando com o governador sitiado no Palácio da Luz — então sede do Governo do Ceará — e renunciado para não ser morto.
Nas eleições seguintes, venceu o oposicionista Franco Rabelo, que passou a perseguir os seguidores da antiga oligarquia, entre eles Padre Cícero. Diante do risco do religioso ser atingido, os juazeirenses se preparam para reagir.
Como parte do plano, Floro articulou uma tentativa de golpe em que instalaria uma Assembleia Legislativa dissidente em pleno Juazeiro, em contraposição à oficial, em Fortaleza. O movimento começou em 15 de dezembro de 1913, ao mesmo tempo que as forças rabelistas reagiram.
Apoiado por jagunços e fiéis de Cícero, Juazeiro resistiu e conseguiu destruir as forças militares. Mais que isso, em janeiro de 1914, os rebeldes começaram a avançar sobre o território cearense. Uma a uma, as cidades foram sendo conquistadas até chegarem à Capital, onde Rabelo foi exonerado e o governo federal passou a comandar.

Em 13 de maio de 1914, as novas eleições foram realizadas e o coronel Benjamin Liberato Barroso foi eleito governador. No acordo, Floro, que havia se autoproclamado líder da Assembleia dissidente, foi confirmado presidente do Legislativo estadual e viajou até Fortaleza para receber o diploma de deputado.
Liberato Barroso, no entanto, tomou diversas medidas para frear o avanço de influência de Floro e Cícero. Uma dessas decisões foi vetar um projeto de lei aprovado na Assembleia Legislativa, de autoria do próprio Floro, que previa a indenização de quatrocentos contos de réis a serem pagos ao próprio Floro, a título de ressarcimento das despesas pessoais feitas por ele na luta armada contra Franco Rabelo.
“Fiz tudo sozinho. Não recebi do governo federal um real sequer, um cartucho, uma espingarda, um caroço de chumbo”, queixou-se Floro em discurso na Assembleia, conforme narra Lira Neto no livro biográfico sobre Padre Cícero.
Em 24 de julho de 1914, o parlamentar então subiu à tribuna para defender Juazeiro da acusação de opositores e justificar seu projeto de lei vetado pelo governador. “Saí da sedição como entrei, de mãos limpas e unhas aparadas”, alegou Floro. O discurso inflamado foi o estopim para incendiar o parlamento polarizado, que foi tomado por correria, tiros e armas improvisadas. O político saiu ileso daquele atentado.
Floro no Rio de Janeiro
A influência que conquistou no Cariri, somada à atuação política ao lado de Padre Cícero, seguiram impulsionando o então deputado para voos mais altos. Ele atuou na Assembleia até 1920, em seguida, conquistou uma vaga como deputado federal.
Cinco anos depois, já no segundo mandato na Câmara dos Deputados, Floro foi designado pelo então presidente da República, Arthur Bernardes, para combater a passagem da Coluna Prestes pelo Ceará. Com a experiência da Sedição, ele montou um batalhão e chegou até a fazer uma aliança com o cangaceiro Lampião, usando o nome de Padre Cícero.
O movimento militar foi um fracasso e, paralelamente, o deputado teve uma piora significativa na sua já debilitada saúde. Ele deixou a linha de batalha para tratar a sífilis no Rio de Janeiro, então Capital Federal, mas morreu intoxicado no tratamento.
A morte de Floro ocorreu em 8 de março de 1926. Seu corpo foi enterrado no Cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro. Ponto do Poder
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