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sábado, 11 de junho de 2022

PADRE JÚLIO LANCELLOTI: " NÃO FALTAM FORÇAS TENTANDO ME DESTRUIR"

Por ipuemfoco   Postado  sábado, junho 11, 2022   Sem Comentários


Desemprego, fome, doença, vício, desespero, pandemia e ódio a pobres. Participando de ações com a população em situação de rua em São Paulo há décadas, o padre Julio

Lancellotti já viu de tudo e agora ainda vê dobrar o número de pessoas sem ter para onde ir. 


Hoje são mais de 35 mil, com aumento acentuado de famílias inteiras e muitas crianças. Ao longo desses anos, enfrentou ameaças e ataques durante a ditadura, participou de movimentos que defendiam alguma dignidade para os moradores de calçadas, praças e buracos em viadutos e conseguiu apoio de muitas pessoas que o ajudam. 


De alguns governantes também, assim como de representantes da Defensoria e do Ministério Público. Mas se houve avanços, também houve retrocessos. Grato a dom Paulo Evaristo Arns, principalmente, por sua formação, emocionou-se com a escolha do papa Francisco. 


Chamado de herege e comunista por alguns setores da Igreja, o padre Julio diz que está cansado, mas segue a rotina diária de convívio com os “indesejados” e diz que “o seguimento de Jesus passa pela cruz, mesmo”.

Como o senhor decidiu trabalhar com os excluídos?
Desde antes de ser padre – e já faz 37 anos que fui ordenado. Participava de ações pastorais quando estudava Teologia e atuava na área de educação, alfabetizava meninas e meninos que não tinham acesso a nada; tratava com adolescentes em conflito com a lei, mulheres e homens encarcerados, crianças com HIV. Estive na Pastoral do Menor e na Pastoral de Rua, até que dom Paulo Evaristo Arns me nomeou vigário episcopal do povo da rua. Dom Cláudio Hummes me manteve, dom Odilo Scherer também. São Paulo é a única cidade do mundo que tem um vicariato episcopal só para essa população em situação de rua.

E o que é vigário episcopal?
É um termo técnico do direito canônico. Aquele que faz às vezes de bispo. É um “ordinário sem caráter” (risos), porque o bispo é um “ordinário com caráter”. Explico a brincadeira: o vicário é “sem caráter” porque não é ordenado bispo. Há vicariatos episcopais da caridade, da justiça, das obras sociais. Mas um vicariato só para a população na rua foi o dom Paulo que criou. Estávamos em uma situação muito tensa. Eu, na Pastoral do Menor, estava incomodando demais o governo Fleury, que me processou. Dom Paulo me substituiu. Mas, no fim da missa do Natal de 1993, ele disse: “Está criado o Vicariato para os Homens de Rua. E o vigário episcopal é o monsenhor Julio Lancellotti.” Foi a forma do Dom Paulo me fortalecer. Ele era de uma lucidez e de uma ousadia únicas.

E como era o trabalho?
Levar a Igreja para a rua. Não apenas rezar pelos moradores de rua, mas rezar com eles. Convivendo e trabalhando juntos, ecumenicamente, pressionando os poderes públicos por respostas humanizadoras. São Paulo tinha menos de 5 mil pessoas em situação de rua. Hoje são mais de 35 mil. Deve ter a maior população nessas condições na América do Sul. Porque Nova York é maior, assim como a de Los Angeles e de São Francisco, com características diferentes.

O senhor é um “ZL” convicto: nasceu, estudou e trabalha na Zona Leste.
Sempre atuei muito nestes bairros. Hoje estou na área da Prefeitura Regional da Mooca, onde a população mais cresceu nas ruas. Mais de 50% nos últimos dois anos, nos anos de pandemia.

Por que a Mooca foi mais afetada?
Um dos aspectos que considero são os motivos históricos. Aqui antigamente funcionaram vários órgãos públicos estaduais de assistência social. Então, criou-se um eixo muito forte.

E mesmo o seu trabalho acaba atraindo quem precisa, não?
Estou nesta paróquia de São Miguel Arcanjo há 37 anos, o que é um caso raro. Mas digo que continuo por dois motivos: nenhum padre quer vir para cá e nenhuma paróquia me quer! [risos] Porque as pessoas dizem: “Aquela paróquia é pobre, pequena e cheia de maloqueiro. E aonde esse padre vai, os maloqueiros vão atrás.”

Alguém determina quem fica onde.
Sim. A Igreja não é uma democracia, é uma hierarquia. O papa Francisco está fazendo um esforço enorme para que a Igreja seja sinodal [sínodo quer dizer “caminhar com’] e não piramidal, que é essa estrutura que começa com papa e bispos e lá na base ficam sacerdotes e fieis.

A Igreja melhorou com o papa Francisco?
Demoraram para anunciar o novo papa, lembra? Foi uma surpresa quando chamaram Jorge Mario Bergoglio. Chorei na hora em que ele disse que seu nome seria Francisco. De Assis. Foi um impacto. Ele surgiu sem adereços e sem cruz de brilhantes, de ouro, de rubis — são várias, de antigos papas, que colocam à disposição do papa eleito. Ficou só com a dele mesmo. Não quis anel de ouro, não colocou sapatos vermelhos. Ele se apresentou com a batina branca e só foi pôr a estola para dar a bênção. Naquela hora, passou uma mensagem: “Mudou tudo.”

E foi brincalhão, humano. Seu trabalho foi facilitado?
Na Igreja, ninguém proíbe ninguém de trabalhar com os pobres ou com pessoas difíceis, indesejadas; de ficar com os moradores de rua, visitar os presos. É que muita gente não quer mesmo. Hoje a Igreja é muito diversa. E alguns movimentos são extremamente fechados. Muitos me chamam de herege, de comunista.

Então o senhor não é uma unanimidade na Igreja?
Não. Ninguém é unanimidade na Igreja. Nem o papa Francisco.

Ele deve sofrer uma pressão tremenda.
Ele é tão esperto que nem foi morar no Palácio Apostólico.

A situação é tensa?
Amenizou um pouco, mas essa tensão interna é muito forte. A graça de Deus, para mim, foi ter sido formado e me ordenado padre durante o cardinalato e o arcebispado do dom Paulo Evaristo Arns e dom Luciano Pedro Mendes de Almeida, quando ainda vivíamos sob impacto de atentados e assassinatos dos anos 1980. Com o episódio dos garotos mortos e jogados em Camanducaia, dom Paulo, para dar uma resposta da Igreja, criou a Pastoral do Menor. Fiz parte dessa primeira equipe, que elaborou o Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1989.

Nestes anos, o que melhorou em relação à vida na rua?
É difícil falar, porque fica parecendo questão política. Mas conseguimos algumas coisas no governo da prefeita Luiza Erundina, como o reconhecimento da profissão dos catadores e a municipalização da atenção à população de rua, com abertura das casas de convivência. A São Martinho é uma delas; a Porto Seguro, da Associação Evangélica, outra. A lei 12.216, sobre a obrigatoriedade do poder público municipal prestar atendimento à população de rua. No governo do presidente Lula, criamos uma política nacional e um comitê para essa população, extinto no início deste governo. Tínhamos avançado e regredimos.

O que existe hoje, por parte dos governos?
Tivemos ganhos, mas não na chamada política pública. Diante dessa desigualdade brutal, ainda vem uma proposta como da secretária municipal de Direitos Humanos, a Soninha Francine, de fazer um camping para os moradores de rua. Ou aquela maluca, do secretário da Saúde, dizendo que vai chamar famílias na delegacia para levar os dependentes químicos, ou serão internados à força. Onde vão achar as famílias? E vão internar onde? Nem tem onde. Continua o rapa, que chamam de zeladoria. E aumenta a aporofobia, que é o rechaço, a aversão, o ódio ao pobre. É um comportamento antigo, como a homofobia e como o racismo, que já são considerados crimes. Estamos tentando equiparar a aporofobia. À medida que a população de rua cresce, cresce a rejeição e a violência. E a população em situação de rua não é purificada. Ouve a mesma propaganda, reproduz o pensamento dominante. Tem terraplanista, armamentista, homofóbico, misógino, tem os que são rejeitados por eles mesmos.

Os anos da pandemia foram piores?
Muitas famílias ficaram sem ter onde morar e aumentou muito o número de crianças. Eu só comparo estes anos aos do Plano Collor, quando chegavam até garimpeiros em São Paulo. Foi um grande salto de miséria. Agora, a pandemia agravou a situação. Diminuiu a linha de migrantes do Nordeste para o Sudeste, porque o movimento para as ruas está mais regionalizado: cresce no Recife, em Salvador, Curitiba. Houve aumento espantoso no Rio e em São Paulo. A cada mês, no Centro São Martinho, debaixo do viaduto Guadalajara, passavam pela primeira vez 4 mil pessoas. Agora passam 8 mil. Dobrou.

Quem apoia o senhor?
Conviver com a população em situação de rua não é fácil. É um desafio. Mas comunidades e muitas pessoas, agora também vários artistas têm me ajudado. Médios empresários — grandes, não. Eu sinto uma onda de apoio muito grande e a ajuda, pulverizada, acaba chegando. Como de prefeitura e Estado não recebo nada, também não têm como me calar.

Como é seu dia normal?
Começa com a missa, às 7h. Vamos, eu e pessoas que me ajudam, para o café da manhã no São Martinho, onde distribuímos agasalhos, meias, luvas, gorros, absorventes, cuecas. Nestes dias, um moço chegou para mim e disse: “Padre, olha minha roupa. Estou cheio de muquirana”. Sabe o que é? É um bichinho que dá no corpo, tipo praga. Levamos para tomar banho, se limpar, trocar de roupa. E quem pergunta se está bem, quem olha nos olhos dela? Outro dia falei que íamos comer pudim e um deles chorou ao se lembrar da mãe. Muita gente acha que eles não têm sentimentos, não têm memória afetiva.

Seus dias parecem ter 72 horas?
São cheios, agitados, com tensão, pedidos, problemas, decisões que têm de ser tomadas. No dia em que dispersaram a Cracolândia, chegaram uns 20 na paróquia, muito tensos, agitados, molhados. É preciso correr para acalmá-los, com respostas coletivas, porque eles não têm paciência de esperar. Nessa correria, abri dois talhos na perna e preciso fazer curativo diariamente. Mas não tem jeito. No meu entender, o seguimento de Jesus é esse. E passa pela cruz.

O senhor é uma fortaleza.
Não. Estou cansado já. Sou velho, tenho 73 anos. Conversei com todos os prefeitos nesse tempo, com vários dos governadores, alguns em situações extremamente conflitivas, e nunca mudei de lado. Mas não faltam forças tentando me destruir.
FONTE ISTOÉ

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