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sexta-feira, 18 de março de 2022

O ARBÍTRIO DA CENSURA

Por ipuemfoco   Postado  sexta-feira, março 18, 2022   Sem Comentários


Na base do totalitarismo vem a censura. Primeira das ferramentas de governos autoritários para colocar em campo

regimes de exceção a contento, ela começa, quase sempre, de maneira sutil, aos poucos, revestida de pseudos-argumentos a favor da ordem e dos bons costumes. 


Depois se alastra como padrão de controle nas sociedades subjugadas a líderes despóticos. O time do presidente Jair Bolsonaro – e ele, em pessoa – vêm dando provas caudalosas e demonstrações incontestes de flertes com esse pendor, dia após dia. 


O último dos movimentos na mesma direção soma cretinice e cinismo para barrar a veiculação de um filme (todo ele, ficção) do humorista e apresentador Danilo Gentili, intitulado Como Se Tornar O Pior Aluno da Escola, lançado em 2017 e que, curiosamente, apenas agora serviu de mote, em plena decolagem da campanha eleitoral, para que os lunáticos seguidores do capitão resgatassem a bandeira do falso moralismo. 


Em gritante afronta aos preceitos constitucionais, que pregam a liberdade de expressão, a tropa do atraso resolveu encasquetar com uma cena, de claro humor cáustico, alegando tratar-se de uma apologia à pedofilia. Demência em forma de protesto. Por mais amoral que a situação ali mostrada pudesse sugerir, enquadrava-se em um relato ficcional e, portanto, passível de exposição, sem qualquer direito de interferência por parte do Estado. 


Mas o pelotão de choque governamental não entendeu assim e, atropelando todas as normas e procedimentos legais, não apenas desceu a lenha na película – previamente, anos atrás, aprovada na mesma pasta da Justiça que quis barrá-la –, como determinou a sua imediata remoção de todas as plataformas de streaming do País, sob pena de multas pesadas. Um desassombro! Nunca, em tempos democráticos, figurou como função do Executivo determinar o que, como e quando uma obra cultural poderia ser assistida e circular livremente. 


No máximo caberia sugerir a classificação etária. Nada, além disso. Estava, assim, na ordem do titular da Justiça, tipificada uma violação à Carta Magna. Mais uma. O ministro Anderson Torres, em clara delinquência de gestão, havia mandado estampar no Diário Oficial o que considerou “providências cabíveis” pelo que interpretou como “detalhes asquerosos” do trabalho. Proibiu sumariamente a exibição pelas empresas privadas Netflix, Globo, Google, Apple e Amazon, algo completamente fora de suas atribuições. 


Teve, logo a seguir, de voltar atrás e contentar-se com uma revisão da faixa por idades aconselhada (lembrando que classificação indicativa é mera recomendação). Desde já é preciso que fique claro: ninguém tem o poder de dizer ao brasileiro o que pode entrar na sua casa para ele ler, assistir ou ouvir. 


É do livre arbítrio de cada um tomar essa escolha. Promover crimes como o da apologia a qualquer tipo de desvio comportamental está em um outro patamar, que deve ser investigado, discutido, julgado e deliberado nos tribunais, jamais nos salões refrigerados do ministério. 


Na prática, o filme que, de resto, traz qualidade discutível, acabou sendo catapultado pela promoção indevida de um conservadorismo tolo e banal. Ficaria a questão: e daí que ele venha a mostrar situações abomináveis? Seja do nazismo à pedofilia, temáticas de qualquer natureza podem ser abordadas sem necessariamente representarem incentivo ou incitação as suas práticas. 


O motivo original para tamanho fuzuê, ao que tudo indica, teve mais fundo político que qualquer outra coisa. Gentili é declaradamente simpatizante do candidato ao Planalto Sergio Moro, e, por conseguinte, da ala de desafetos dos bolsonaristas. Alguém do bloco do capitão achou por bem imputar ao comunicador acusações de caráter sexual, dessa forma desacreditando-o publicamente. 


Recebeu guarida do próprio ministro da Justiça, Anderson Torres, que é também (vejam só!) candidato a deputado pelo escrete do mandatário. Tudo encaixado, o rebuliço estava montado. No pano de fundo da opereta bufa, a hipocrisia e estupidez despontam. Os apoiadores da cruzada contra o filme não lembraram ou passaram o pano, convenientemente, sobre um episódio anterior – decerto bem mais grave –, de quando o presidente Bolsonaro fez piada de duplo sentido com uma menina de apenas dez anos, durante uma das habituais lives semanais. 


Ali o “mito” ironizou, com insinuações de conotação erótica, as alegações da youtuber mirim de que suas primeiras entrevistas em vídeo haviam sido feitas aos seis anos. Na base da gargalhada, ele retrucou com a expressão “começou cedo”. Deixando de lado as sempre inadequadas e deploráveis infâmias presidenciais, o episódio de cerceamento a Como Se Tornar O Pior Aluno da Escola encerra lições dignas de nota. 


A blitz bolsonarista procura desviar o foco sobre o desastre do legado cultural a ser deixado por esse governo. Ele implodiu tudo, até com os mais elementares recursos da Ancine, da Funarte, da Biblioteca Nacional e do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), que ficaram à míngua. Os áulicos adoradores do Messias tentam recauchutar polêmicas e impor uma guerra cultural cujo objetivo fim é o do retrocesso. 


Não é competência da pasta de Torres decidir se um filme pode ou não ser exibido, interferir na livre opção de cada um. Caso considerasse ofensiva a temática, uma cena ou o todo do longa-metragem deveria ter procurado o Judiciário e não deliberar diretamente a respeito. Com a canetada, o prestimoso ministro errou feio. Resgatou momentos sombrios e evidenciou o déficit de conhecimento das Leis. 


Seu contorcionismo retórico em defesa da família fere conceitos basilares da liberdade de comunicação. Intolerável em um ambiente que preza por fundamentos democráticos. Não há como jogar fora das regras. A censura é execrável nas circunstâncias criadas e caracterizou abertamente abuso de poder. 


Decerto, ninguém pode privar indivíduos independentes de suas escolhas, sejam sobre conteúdos ou quanto à maneira de pensar. Restou o ridículo, o burlesco, o bizarro de mais um gravíssimo atentado da escumalha bolsonarista.CARLOS JOSÉ MARQUES

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