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domingo, 26 de julho de 2020

BRASIL; AUTORIDADE DOENTIA

Por ipuemfoco   Postado  domingo, julho 26, 2020   Sem Comentários


Alguns dos piores traços do caráter nacional têm se manifestado com frequência, nas últimas semanas, e mostrado que a propalada cordialidade brasileira não demora um segundo para virar ilusão. 

São constantes as imagens de gente querendo ganhar discussões no grito, impondo autoridade, dando “carteiradas”, agredindo inocentes e, principalmente, recusando ser chamada de cidadã ou cidadão, como se fosse uma afronta. Parece que a cidadania virou uma ofensa pessoal e a grosseria deveria se impor como padrão de comportamento. 

Os problemas vão muito além da pandemia, estão nas nossas raízes, mas a exigência de uso de máscaras para proteção contra a Covid-19 e a proibição de aglomerações tornaram-se os maiores disparadores de discórdias. 

Agentes de saúde e profissionais de segurança, que tentam fazer as regras serem cumpridas, são alvos de pessoas que se acham superiores e expõem o lado mais pernóstico da nossa cultura, que tem no rebaixamento um de seus pilares. 

“Sabe com quem está falando?” é a frase preferida do anticidadão brasileiro para mostrar-se melhor do que os outros e burlar as regras.

O vídeo do desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo Eduardo Almeida Prado de Siqueira que circulou nas redes sociais, chamando de “analfabeto” e “guardinha” o guarda civil de Santos, Cícero Hilário, que o havia multado por falta de máscara, é um exemplo bem-acabado dessa síndrome de superioridade que macula o espírito nacional. “Cidadão, não. Desembargador, com contatos. Melhor que você”, declarou para o profissional que tentava fazer seu trabalho. 

Para se justificar, Siqueira disse que o decreto municipal que tornou obrigatório o uso do equipamento de proteção “não é lei” e ameaçou jogar a multa de R$ 100,00 na cara do guarda. Em seguida, telefonou para o secretario de Segurança Pública de Santos, Sérgio Del Bel, para reclamar da situação, numa típica “carteirada”. 

“Estou aqui com um analfabeto de um PM seu. Eu falei, vou ligar para ele (Del Bel) porque estou andando sem máscara. Só estou eu na faixa de praia que eu estou”, disse para o secretário. 

O desembargador revela que para algumas pessoas ser tratado como um cidadão, seguir certas regras que todos devem obedecer, é um ultraje. Há uma nítida extrapolação de poder, além de uma vontade de crescer sobre o outro, de torná-lo inferior.

Vício estrutural

Há 41 anos, o antropólogo e professor titular da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ) Roberto DaMatta publicou um livro chamado “Carnavais, Malandros e Heróis – Para uma sociologia do dilema brasileiro”, no qual deixou claro que esse sentimento de superioridade que afeta as relações sociais tem suas origens na sua própria formação do País e no seu desenvolvimento. 

DaMatta mostrou que a frase “sabe com quem está falando?” expõe um profundo vício estrutural de uma terra de homens e mulheres que rejeitam a igualdade. Não se trata apenas de um comportamento isolado e individual, como o do desembargador, mas de uma manifestação obscura que aparece em momentos críticos. No capítulo 4 da obra, ele classifica a pergunta como um rito cultural, um traço persistente da cultura nacional forjada na escravidão e na desigualdade.

“O Brasil é uma sociedade especializada em esconder coisas embaixo do tapete, é aristocrático e alérgico à igualdade”, disse DaMatta à ISTOÉ. “O que estamos vivendo de maneira intensa é a dificuldade de lidar com o regime democrático, que exige autocrítica”. Segundo o antropólogo, o fato da sociedade brasileira ter sido construída por escravos e não por operários explica, em parte, essa distorção de comportamento. 

“Vejo uma reação violenta ao elemento básico da democracia, que é a igualdade. Para o brasileiro, quem manda dá ordem e obedecer é sinal de inferioridade. Isso ficou bem claro nesse caso do desembargador. Ele se recusou a acatar a ordem do guarda, que ele julga que se trata de um ser inferior”, afirmou.

Devido à pandemia, houve uma mudança repentina da realidade, que disparou uma crise comportamental com a qual muita gente não está sabendo lidar. Casos de ofensas e de agressões verbais gratuitas e desproporcionais pipocam toda hora em vídeos divulgados pelas redes sociais. Além do episódio de Siqueira, várias outras situações expuseram os piores instintos dos brasileiros. 

No Rio de Janeiro, no início do mês, uma mulher e um homem ofenderam o superintendente de Inovação, Pesquisa e Educação em Vigilância Sanitária da Prefeitura local, Flávio Graça, durante uma operação de fiscalização em bares e restaurantes da Barra da Tijuca que não cumpriam as normas de distanciamento social. 

Assim que Graça chamou o homem de cidadão, a mulher retrucou: “Cidadão, não. Engenheiro civil formado e melhor que você”, disse ao fiscal. Sentindo-se admoestada, algo que muitos brasileiros adultos têm dificuldade em aceitar, a mulher tentou impor sua superioridade. E mais uma vez, a condição espezinhada foi a de cidadão, posição que muitos consideram inferior, uma denominação genérica para uma pessoa qualquer.

Direitos e deveres

Pelo que se vê, o Brasil deve ser o único país do mundo em que a pessoa se sente ofendida e rebaixada ao ser chamada de cidadão. O conceito de cidadania, que envolve uma percepção clara de direitos e deveres, ganhou forma a partir do Iluminismo e da Revolução Francesa, na segunda metade do século 18, quando a posição da aristocracia, que vivia acima da lei, passou a ser questionada na França. 

O que define um cidadão, basicamente, é usufruir de seus direitos civis, em especial, à liberdade, à propriedade e à igualdade e cumprir seus deveres legalmente estabelecidos. Mas no Brasil ser igual aos demais é um incômodo e tripudiar com o semelhante é um vício nacional.

Enquanto o brasileiro diz “sabe com quem está falando”, um americano diria “quem você pensa que é”. “O desejo de humilhar e a vontade hierarquizante fazem parte de um ritual de destituição da cidadania”, afirmou DaMatta.

“Ganho R$ 300 mil” O engenheiro Ivan Storel humilhou dois PMs que foram verificar uma denúncia de violência doméstica em sua casa. “Passo por tratamento psiquiátrico e estava sob efeito de álcool e de remédio. Peço perdão à PM pela minha atitude”, justificou (Crédito:Divulgação)

Em Alphaville, bairro luxuoso da região metropolitana de São Paulo, o engenheiro Ivan Storel, em mais uma demonstração de barbárie, surtou, no final de maio, com dois policiais militares, um cabo e um soldado, que foram à sua casa para verificar uma denúncia de violência doméstica feita por sua esposa. 

Com um discurso furioso, ele revelou seu lado mais preconceituoso e violento e recusou-se a atender os guardas cordialmente. 

“Você pode ser macho na periferia, mas aqui você é um bosta. Aqui é Alphaville, mano”, disse, ao berros, para o cabo da PM que tentava realizar seu serviço. “Você não me conhece, ganho R$ 300 mil por mês e você é um merda de um PM que ganha R$ 1 mil”. 

Para os fomentadores da desigualdade, o mais importante é a profissão, o diploma, o alto salário e não as regras que precisam ser cumpridas e o respeito ao próximo. Há uma esquisita autopercepção de status e poder, que impulsiona o transgressor a fugir de suas responsabilidades.

Num ponto extremo de rebaixamento e anticidadania, um policial militar pisou no pescoço de uma mulher em Parelheiros, na zona sul de São Paulo. Num vídeo exibido pelo programa Fantástico, da TV Globo, no domingo 12, a mulher, uma comerciante negra de 51 anos, mãe de cinco filhos e dona de um bar no bairro, aparece caída no chão e imobilizada. 

“Quanto mais eu me debatia, mais ele apertava a botina no meu pescoço”, declarou a vítima. O policial João Paulo Servato, 34 anos, alegou que foi atacado por uma barra de ferro e que estava se defendendo, uma situação que as imagens desmentem. Disse que usou o “meio necessário para conter a comerciante”. 

Depois de sofrer violência e humilhação, a mulher foi levada a um hospital, com ferimentos no rosto e a perna quebrada. Foi mais uma cidadã brasileira humilhada por uma autoridade doentia.


“A gente vê que uma postura nossa gerou admiração, nosso trabalho foi reconhecido e isso trouxe orgulho para minha família” Cícero Hilário, guarda civil de Santos (Crédito:Divulgação)

“Ainda não resolvemos a contradição entre o senhor e o escravo, entre a casa grande e a senzala”, diz o historiador Marco Antonio Villa. “Nós passamos 130 anos de República, mas a questão da igualdade ainda é um traço de resistência.” 

Segundo ele, aqueles que se sentem donos do poder e dos espaços sociais continuam vendo o cidadão comum como “arraia-miúda, plebe ignara”. Percebe-se no “aristocrata” brasileiro uma vontade de rebaixar o próximo para elevar sua própria posição. Há, porém, uma reação vigorosa das instituições e da sociedade diante das agressões, o que, de alguma forma, revela uma evolução social. 

“A gente observa que essas manifestações existem, mas são cada vez mais dissonantes. Hoje vira um escândalo. Isso é positivo. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) agiu rapidamente, o que mostra que o próprio Poder Judiciário rejeita esse comportamento do desembargador”, explicou.

No caso de Siqueira, a reação institucional foi imediata. O corregedor nacional de Justiça, ministro Humberto Martins, determinou a abertura de um pedido de providência para investigar sua conduta com os guardas civis. Martins deu um prazo de 15 dias para que o desembargador dê informações sobre sua atitude. 

O ministro do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) Marco Aurélio Mello criticou Siqueira. “A autoridade na rua é o guarda, não o desembargador”, afirmou Mello. “Somos autoridades no tribunal, com a capa nas costas. Na rua, somos cidadãos.” 

Os guardas municipais agredidos, Cícero Hilário e Roberto Guilhermino, que também participou da ação, foram homenageados pela Prefeitura da cidade por causa da conduta exemplar no episódio. Os dois mantiveram a calma e ouviram Siqueira respeitosamente. “A gente vê que uma postura nossa gerou admiração, nosso trabalho foi reconhecido e isso trouxe orgulho para minha família”, disse Cícero ao ser condecorado.


HERANÇA DA ESCRAVIDÃO Segundo o antropólogo Roberto DaMatta (à direita), a sociedade brasileira é “alérgica à igualdade”. “Aqui, quem manda dá ordem e obedecer é sinal de inferioridade”, diz. Para o historiador Marco Antonio Villa, a recusa à igualdade é evidente, mas há sinais de evolução. “Essas manifestações existem, mas são cada vez mais dissonantes. Hoje vira um escândalo”, afirma (Crédito:Divulgação)

Indignação social

A mulher que ofendeu a fiscal da Prefeitura do Rio perdeu o emprego. A empresa do setor elétrico Taesa, onde ela trabalhava, emitiu uma nota em que afirma que “compartilha a indignação da sociedade em relação a este lamentável episódio”, destacando que a funcionária desrespeitou “a política vigente da empresa de isolamento social e prevenção ao novo coronavírus”. 

O homem que ofendeu os policiais em Alphaville publicou um vídeo pedindo desculpas e atribuiu seu descontrole a um problema médico. “Não quero me eximir de responsabilidade, mas passo por tratamento psiquiátrico e estava sob efeito de álcool e de remédio. Peço perdão à PM pela minha atitude”, disse Storel. 

A PM informou que os policiais envolvidos no caso da comerciante agredida em Parelheiros foram afastados e permanecerão fora das atividades operacionais até a conclusão das investigações.

A síndrome de superioridade que afeta muitos brasileiros ganhou dimensões de patologia social. A pandemia abriu uma nova frente de impropérios e violências verbais contra profissionais que contribuem para inibir o avanço do coronavírus. 

Em pleno estado de calamidade pública, ainda há pessoas que não sabem se comportar, cometem atos de desobediência civil e querem ficar impunes. Há gente que acha que não deve usar máscaras porque se trata de algo inútil ou de uma invasão de privacidade. Agentes sanitários sofrem ameaças frequentes em operações de fiscalização e encontram várias pessoas se comportando de maneira agressiva e arredia. 

É uma pena. Já está na hora de algunsbrasileiros deixarem de se sentir melhores do que os outros e passarem a respeitar a suprema condição de cidadão.ISTOÉ

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