Pages

quarta-feira, 22 de julho de 2015

SAINDO DA ROTINA; "SÓ POR HOJE E PARA SEMPRE", UM RELATO SINCERO DE RENATO RUSSO

Por ipuemfoco   Postado  quarta-feira, julho 22, 2015   Sem Comentários


Às vésperas da Semana Santa de 1993, o cantor Renato Russo tomou uma decisão extrema. Depois de quase morrer de overdosemais de uma vez, internou-se numa clínica de reabilitação próxima ao Maracanã, no Rio de Janeiro. Àquela época, venerado como líder da banda Legião Urbana, ele constatou ter “chegado ao fundo do poço, sentindo angústia, solidão e dor (até física, por vezes)”. 

O período de desintoxicação, que durou quase um mês, envolveu diversos exercícios psicológicos. Uma das terapias prescritas consistia em responder, por escrito, a perguntas feitas pelo corpo clínico, ou desenvolver temas apresentados por eles. Essas “folhas de eventos significativos”, como eram chamadas, integraram o espólio do cantor, que morreria três anos depois de redigi-las. 

Filho único do artista, Giuliano Manfredini, de 26 anos, quis compartilhar esse diário de internação e reuniu os textos no livro Só por hoje e para sempre – Diário do recomeço (Companhia das Letras, 167 páginas, R$ 34,90).

Em tom confessional, Renato Russo aborda seu vício em álcool, maconha, cocaína e heroína, seus relacionamentos sempre fugazes – e alguns platônicos, como o amor que revela sentir por Dado Villa-Lobos, seu companheiro de banda. “Era um amor platônico por essência, mas em minhas fantasias, outra coisa, completamente diferente”, escreveu. 

Relata ainda sua descrença generalizada no mundo e nas pessoas, que descambava em autodestruição. A fase de recolhimento teve reflexo direto em seu trabalho posterior, o disco O descobrimento do Brasil. Um exemplo: a canção “Vinte e nove”, cujo título se refere aos dias exatos de confinamento, traz o sintético verso “decidi começar a viver”. 

Abaixo, leia um trecho da publicação em que, ao responder a um exercício terapêutico no qual precisava listar cinco comportamentos autodestrutivos de seu passado, o autor faz um retrato sombrio de si mesmo.

“1. Em agosto de 1990, quando estava morando no Marina Palace Hotel, no Rio de Janeiro, e alternando meu uso de álcool com heroína (os dois juntos não combinam), passei uma noite me queimando no rosto e nos braços com cigarros acesos. Fiquei com feridas bem visíveis, de até um centímetro de diâmetro, especialmente no braço esquerdo e na testa. Só senti um pouco de dor, e uma compulsão masoquista me levava a aumentar cada vez mais as feridas e queimaduras, que, por sorte, cicatrizaram sem deixar sequelas, em dois meses. Não me incomodei com o fato porque nesse período estava completamente anestesiado por minha dependência química. Me senti vazio de sentimentos e emoção, a não ser por ansiedade.”

“2. Durante meu uso de heroína, entre agosto e outubro de 1990, tanto no hotel onde morava, como em viagens para shows e apresentações ao vivo pelo país (principalmente Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro), tive os primeiros sintomas de abstinência. Entrei em pânico, porque é o pior pesadelo, um vazio espiritual e uma angústia terrível, acompanhados de muita dor física e desconforto. Isso durou dois dias na primeira vez (cheguei a tomar mais de 100 mg de Valium para tentar dormir) e quatro dias na segunda interrupção do uso (porque voltei a usar a droga – que é minha droga de preferência – assim que entrei em contato com o fornecedor novamente). Lembro que da segunda vez tentei de tudo para minimizar a dor e o pânico, e nada adiantou. Nem Valium, ou massagens, preces, banhos quentes, ter companhia de amigos, outras drogas. Decidido a parar, por causa de meu trabalho (nessa época já não deixava nada interferir no meu desempenho em palco, só fora dele), voltei ao álcool, maconha e tranquilizantes. Vivia um estado de euforia ou depressão, medo ou sedação (e falta de contato com a realidade). No fundo achava muito romântico e até heroico estar me destruindo assim.”

“3. Até que chegou o último show da turnê (por sinal, a mais bem-sucedida até então, a do disco As quatro estações). Me drogava e bebia muito, um dia antes, e sempre depois da apresentação. Íamos para Volta Redonda de ônibus, e tive que ter acompanhamento psiquiátrico a viagem inteira, além do uso de muitos sedativos e vitaminas, para diminuir meu sofrimento. Senti muita frustração e confusão (mental e espiritual até). Fiquei o dia inteiro trancado no quarto do hotel enquanto todos se divertiam, animados e sem maiores preocupações. Me lembro que rezava para que chovesse e o show fosse cancelado, já que não queria enfrentar o público. Abrimos esta última apresentação com ‘A whiter shade of pale’ (clássico da banda inglesa Procol Harum, lançado em 1967), que descrevia meu estado perfeitamente, e, já no palco, não tive maiores problemas. Deveria ter sentido a culpa de sempre, mas o alívio por não ter que subir num palco depois desse show era tão grande, que voltei a me anestesiar (com tranquilizantes e álcool) e a me fechar em mim mesmo, com risco de vida.

“4. O período todo entre julho de 87 e maio de 88 foi marcado por meu uso intenso de cocaína e álcool. Um parente meu comprava a droga para mim, eu dava o dinheiro. Eu cheirava junto com meu namorado, enquanto meu parente se picava. Passamos mal muitas e muitas vezes. Foram incontáveis as semanas de completa autodestruição: não me alimentava, ficava trancado em meu quarto lendo, ouvindo música e assistindo vídeos, e dormia de dia e ficava acordado até as 8 h da manhã, sempre. Me isolei e só tinha contato com o mundo pelo telefone. Foi um período de muita compulsão sexual também, quase sempre mal resolvida, o que me trazia raiva, frustração, e me levava a exagerar cada vez mais o uso da droga. Entrei em pânico completo pelo menos uma vez, quando tive que pedir para chamarem um médico. Nem tive vergonha ou culpa, tal o meu estado. No final desse período, já tinha brigado com meu parente e com meu namorado. Meu namorado foi morar com esse meu parente e sua família (morávamos na mesma rua), e me senti frustrado e só. Quase morri de overdose incontáveis vezes (às vezes nem chegava a perceber meu estado), o que, além do medo, me causava um sentimento de culpa muito intenso e constante e um isolamento cada vez maior, um ressentimento em relação a todos que me cercavam e raiva do mundo. Nessa época não queria perceber o estado em que me encontrava e senti muita dor emocional e solidão.”

“5. Após um período de abstinência devido a uma hepatite B muito séria (quase morri) e dois anos de análise, tive uma recaída e voltei ao álcool e tranquilizantes, dessa vez já consciente do meu problema: agora eu iria até o fim. Não me importava mais com nada, só tinha pensamentos e emoções extremamente negativos, minha compulsão sexual voltou (por vezes, eram cinco meninos toda noite) e eu só pensava em morrer. Foi esse período, de dois meses para cá, que foi ‘o meu fundo do poço’. Fingia estar bem para o mundo, mas todos sabiam dos meus problemas. Meu analista conseguiu finalmente me convencer a uma internação e vim a achar Vila Serena. Estaria morto antes do final do ano (era esse meu objetivo), e minha autoestima era inexistente. No final só sentia raiva, autopiedade e inadequação. Foi como cheguei aqui.”

Sobre o autor

Adicione aqui uma descrição do dono do blog ou do postador do blog ok

0 comentários:

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...
.
Voltar ao topo ↑
RECEBA NOSSAS ATUALIZAÇÕES

© 2013 IpuemFoco - Rádialista Rogério Palhano - Desenvolvido Por - LuizHeenriquee