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sábado, 7 de março de 2020

AFRONTA AO ESTADO LAICO

Por ipuemfoco   Postado  sábado, março 07, 2020   Sem Comentários


Se pudesse, o presidente Jair Bolsonaro substituiria, sem pestanejar, a Constituição pela Bíblia. 

Apesar de dizer que o Estado é laico, mas ele é cristão, a prática do seu governo desmente essa distinção. 

A laicidade do Estado nunca esteve tão ameaçada de retrocesso desde os primórdios da República, como na sua gestão. As duas esferas, a religiosa e a estatal, estão cada vez mais misturadas e o que o presidente faz é governar para tornar ainda mais tênue essa separação, que, para o bem da democracia, deveria ser respeitada como uma espécie de cláusula pétrea. 

Em vez disso, em nome de Jesus, Bolsonaro vai colocando seus irmãos de fé nos cargos de poder e botando suas vontades moralistas em prática. O proselitismo religioso evangélico e o messianismo invadiram a máquina estatal e passaram a contaminar as políticas públicas.

O teólogo Ricardo Lopes Dias, um missionário evangelizador, por exemplo, assumiu a chefia de uma das áreas mais sensíveis da Funai, a coordenação de índios isolados e de recente contato. Para comandar a Coordenação de Aperfeiçoamento de Nível Superior (Capes) foi nomeado um criacionista, o ex-reitor da Universidade Presbiteriana Mackenzie Benedito Aguiar Neto. 

E a fé cristã também se transformou no eixo da política externa do governo, que é liderada por um católico conservador, o chanceler Ernesto Araújo. A situação anda tão exagerada que os próprios religiosos realizaram um evento para discutir a perigosa guinada teocrática brasileira. No fim de janeiro, a Frente Inter-Religiosa Dom Paulo Evaristo Arns por Justiça e Paz reuniu-se para discutir as ameaças ao Estado laico e o aumento da intolerância no País. 

Participam da frente 11 denominações religiosas, incluindo vertentes de matriz africana, católicos, evangélicos, kardecistas, judeus, muçulmanos, mórmons, budistas e lideranças espirituais indígenas, entre outros. 

“A nossa grande preocupação agora é a manutenção do Estado laico. A presença religiosa no Estado está ficando cada vez maior e vemos pela primeira vez um governo se apoiando em um segmento religioso para manter a esperança de continuar no poder”, afirma o pastor da Comunidade Cristã Reformada, Ariovaldo Ramos, integrante da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, que participou do encontro. 

“O papel da igreja é ser a consciência da sociedade e não assumir o poder, mas os atos do governo, as aproximações, as falas do presidente deixam entender que há uma preferência por um determinado grupo religioso”. No caso, trata-se dos evangélicos, tantos os tradicionais como os neopentecostais.


Máquina evangélica

Há, neste momento, cinco evangélicos ocupando cargos de ministro e acentuando o tom religioso no governo. Além da ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, que atua na linha de frente contra a secularização do Estado e prega a abstinência sexual, há o titular da Cidadania, Onyx Lorenzoni, o do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, o da Advocacia Geral da União (AGU), André Luiz Mendonça, e o ministro-chefe da Secretaria do Governo, general Luiz Eduardo Ramos. 

No segundo escalão do Ministério de Damares, há vários religiosos em posições de comando, como os evangélicos calvinistas Sérgio Queiróz, Guilherme de Carvalho e Maurício Cunha. Damares costuma dizer, em suas pregações, que é chegada a hora da igreja ocupar a Nação. Em entrevista para a agência alemã Deutsche Welle, a ministra disse que as igrejas evangélicas pentecostais têm um excelente trabalho social e podem ajudar muito mais o Brasil. 

O que a ministra propõe é um uso mais constante desse equipamento religioso para combater problemas sociais. “Nós temos uma grande denominação no Brasil, que é a igreja Assembléia de Deus, que tem mais de 40 mil templos. Se cada igreja trouxesse um venezuelano e cuidasse dele nós resolveríamos o problema da fronteira”, afirma. 

Damares considera que as igrejas podem também oferecer casas de abrigo para mulheres vítimas de violência e pensa em parcerias nos moldes das feitas com as comunidades terapêuticas de cunho religioso para tratar usuários de drogas. Em 2019, essas comunidades passaram a receber dinheiro público, precisamente R$ 153,7 milhões por ano.


PACTO Bolsonaro e o bispo Edir Macedo: governo defende interesses da Igreja Universal no Brasil e no exterior (Crédito:Alan Santos/PR)

A agenda do presidente reforça essa orientação evangélica do governo. No ano passado, desde sua posse, Bolsonaro esteve em 46 eventos religiosos, enquanto só foi a 22 encontros com representantes da sociedade civil organizada, como associações de classe, ONGs e sindicatos, entidades que ele associa a partidos de esquerda. 

Na lista dos grupos que dão sustentação ao presidente, os evangélicos só perdem para os militares. Entre os eventos e celebrações religiosos dos quais Bolsonaro participou merecem destaque a Convenção Nacional das Assembleias de Deus no Brasil e a 27ª edição da Marcha para Jesus, em São Paulo, na qual ele foi o primeiro presidente a comparecer. Na festa de 7 de setembro, em Brasília, o bispo Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus, ficou ao seu lado na tribuna de honra. 

Neste ano, a rotina religiosa continua a todo vapor. Em fevereiro, esteve num grande evento no estádio Mané Garrincha, a mega mobilização evangélica The Send Brasil, culto-festival que reuniu missionários de vários países e teve um público de 27 mil pessoas. 

Na véspera do Carnaval, na semana em que o ex-presidente Lula se encontrava com o Papa Francisco, Bolsonaro participou, no Rio de Janeiro, do show de comemoração de 40 anos da Igreja Internacional da Graça de Deus, ao lado do pastor R.R.Soares. No fim do ano passado, Bolsonaro reuniu no Palácio do Planalto mais de 500 religiosos evangélicos num culto de Ação de Graças e chorou ao se lembrar da facada que levou em Juiz de Fora.

É bom lembrar que a candidatura de Bolsonaro, em 2018, foi organizada em torno de uma aliança com evangélicos conservadores. Ele já tinha um alinhamento com a Frente Parlamentar Evangélica desde 2011, quando surgiu a fakenews do “kit gay”. Posteriormente, em maio de 2016, o então deputado federal foi batizado pelo pastor da Assembléia de Deus e político Everaldo Pereira (PSC-RJ) no Rio Jordão, em Israel. 

Com isso, embora seja católico, ele ganhou legitimidade junto aos evangélicos, que passaram a se identificar mais fortemente com suas posições. Tratou-se de uma aproximação simbólica, mas que lhe engrandeceu politicamente junto ao grupo religioso que mais cresce no País. 

“Bolsonaro tem uma aliança política com os evangélicos que foi construída nos últimos nove anos, se estreitou na campanha eleitoral e se intensificou no primeiro ano de governo”, diz o sociólogo e professor da USP Ricardo Mariano.

Afinidades eletivas

“Há alguns atritos envolvendo porte de armas e legalização dos cassinos, mas a afinidade política entre as duas partes é muito grande”. 

Para Mariano, existe uma combinação de interesses. De um lado, há a volúpia dos ativistas religiosos em ocupar cargos públicos e, de outro, a estratégia do governo em manter sua base política. Pesquisas feitas nas vésperas do segundo turno indicavam que 69% dos evangélicos tinham intenção de votar em Bolsonaro. 

Pelos dados do último censo havia, em 2010, 42,3 milhões de evangélicos no País, o equivalente a 22,2% da população. A bancada evangélica no Congresso, com a qual o presidente mantém uma ótima relação, conta hoje com 82 deputados — em 1986, na primeira eleição pós-redemocratização, eram 16.

Na sua estreita relação com os religiosos, Bolsonaro pretendia, por exemplo, utilizar igrejas evangélicas para coletar as assinaturas necessárias para a criação de seu novo partido, Aliança pelo Brasil. Em janeiro, o pastor Emerson Patriota, da Igreja Presbiteriana Central de Londrina, pediu aos fiéis para que assinassem uma ficha de apoio à criação do partido. 

Em outra frente, o presidente sempre fala em nomear um ministro “terrivelmente evangélico” para o Supremo Tribunal Federal (STF). Um dos candidatos é o ministro André Luiz Mendonça, da AGU. 

“Bolsonaro não tem apreço pela laicidade do Estado e defende o Estado cristão, com a ocupação religiosa das políticas públicas, do Parlamento e do próprio governo. O partido que ele está tentando criar traz proposições evangélicas”, diz Mariano. 

Na educação, se não houver oposição, o governo pretende impor a ideia do criacionismo bíblico e do design inteligente, que é o criacionismo travestido de ciência. À frente do Capes, Aguiar Neto, evangélico calvinista, deve promover essa teoria. Os calvinistas reivindicam a hegemonia da religião sobre a cultura e promovem a ideia de superioridade moral do cristianismo. 

“Evangélicos se opõem à decisão do STF de criminalizar a homofobia, promovem discursos de ódio e fomentam a discriminação”, completa. Em agosto, o presidente afirmou que queria à frente da Agência Nacional do Cinema (Ancine) um evangélico que conseguisse “recitar de cor 200 versículos bíblicos, que tivesse o joelho machucado de tanto ajoelhar e que andasse com a Bíblia debaixo do braço”.

Influência na diplomacia

A política externa brasileira está sendo amplamente afetada pelo fundamentalismo do governo. O Itamaraty tem contrariado a Constituição e pregado a religião como política de Estado. Com seu apoio, parlamentares ligados a igrejas neopentecostais estão ocupando espaços para liderar a agenda do Brasil junto aos países africanos. 

A iniciativa pretende facilitar a entrada de igrejas e missionários nessas nações. Em uma recente viagem pela África, o chanceler Ernesto Araújo, acompanhado dos deputados federais e pastores Marco Feliciano e Márcio Marinho, promoveu a fé evangélica e defendeu a atuação das denominações brasileiras. 

O Itamaraty fomenta o discurso da liberdade religiosa para proteger os interesses das igrejas neopentecostais no exterior, em especial da Igreja Universal do Reino de Deus, cuja atuação na África é questionada e gera revolta. Há um mês, Araújo foi aos Estados Unidos participar do lançamento oficial da Aliança de Promoção da Liberdade Religiosa Internacional. Enquanto isso, no Brasil, essa liberdade está sendo ameaçada. 

As religiões afro-brasileiras são as mais discriminadas e quem mais discrimina são, justamente, os evangélicos, que também atacam as religiões e crenças indígenas. A nomeação do teólogo Lopes Dias para a chefia de uma das áreas mais sensíveis da Funai indica uma intenção de varrer do mapa as culturas autóctones. 

Religiosos como Dias, missionário há dez anos na Missão Novas Tribos do Brasil, consideram os indígenas um quadro em branco pronto para receber a palavra de Deus e vêem seus ritos religiosos como demoníacos.
 

O que se espera de uma República democrática é que não haja interferência do governo nas questões de fé e nem envolvimento das religiões com o Estado. Desde o decreto 119-A de 1890, de autoria de Ruy Barbosa, essa questão parecia estar pacificada. Como adiantou Thomas Jefferson, em uma carta para a Associação Batista de Danbury, em 1802, deve haver um muro de separação entre Igreja e Estado para o bem da democracia. 

Mas o slogan do governo “A família acima de tudo e Deus acima de todos” mostra que no Brasil esse muro caiu. O aparelho estatal está sendo invadido pelos interesses evangélicos e a secularidade do governo virou letra morta. 

“O princípio da laicidade do Estado está sendo atropelado. Não se pode transformar o governo num puxadinho das igrejas e nem justificar políticas públicas com a Bíblia”, afirma Mariano. “Esse ativismo político religioso é fundamentalista e avesso aos direitos humanos.”ISTOÉ

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